sexta-feira, 15 de março de 2013

Os Playboys do Tortosendo (1ª parte)


1ª parte do artigo publicado no Jornal Publico de 10/Março/2013 - Os Playboys do Tortosendo - uma crónica fiel que retrata o ambiente da Vila do Tortosendo antes e depois da revolução de Abril.

O Mercury V8 azul, de 1950, a deslizar pela Avenida Viriato. As fábricas a laborar em pleno, sem dar tréguas aos teares, bobinadeiras, râmolas, urdideiras e cardas, mesmo quando os operários de fato-macaco abrem as marmitas com batatas cozidas, sentados à porta, na rua, faça sol ou caia neve. O ronco altaneiro, fanfarrão, dos 4200 centímetros cúbicos dos oito cilindros do majestoso Mercury de Francisco Batista, a ecoar entre a sua casa e o edifício da Moura e Batista, e entre este e o Clube Avenida, onde se joga às cartas e se organizam bailes chiques, e onde os operários não entram. Famílias a passar fome nos casebres do Casal da Serra, enquanto as senhoras vão à missa de limusina, conduzidas por um motorista fardado. Crianças de 11 anos a trabalhar nas fábricas, a troco de nada, enquanto os jovens fi lhos dos industriais coleccionavam carros e participavam em corridas, sem nunca terem tido um emprego. 

E sem nunca terem brincado com os filhos dos operários, que viviam na casa ao lado. Que resta hoje desse Tortosendo de prosperidade de uns e miséria de outros, de exploração, de ostentação, de humilhação, de assédio sexual das operárias dos turnos da noite, de revolta, de greves e prisões? As fábricas estão em ruínas, os palacetes estão fechados, e o resto? Onde foi parar todo o esplendor, toda a vaidade? A superioridade, o preconceito e a prerrogativa? Onde estão os carros de corrida? As avionetas que levavam os patrões ao Casino Estoril? Que será feito do imponente Mercury V8 de Francisco Batista? 
Ao entrar pela estrada que vem da Covilhã, o Tortosendo é uma cidade-fantasma. Ou uma “cidade sinistrada”, como prefere dizer o escritor Manuel da Silva Ramos, a respeito da Covilhã. O Tortosendo é igual, ou pior. Aqui não nasceu uma universidade, para aproveitar alguns dos edifícios monumentais da arqueologia industrial, atrair jovens estudantes, a quem as famílias dos antigos operários agora alugam quartos. Aqui não há nada. Nos arredores nasceu um parque industrial, com armazéns e fábricas de arquitectura horrenda, mas o centro da vila continua dominado pelos magníficos edifícios do seu período áureo. Nos anos 1950 e 60 havia mais de 20 fábricas na pequena povoação do Tortosendo, que davam trabalho a cerca de 5 mil pessoas. As elites dos lanifícios viviam à grande. No meio da serra da Estrela, num mundo de pastores, agricultores e operários mal pagos, um mundo de analfabetismo e isolamento, a elite industrial dançava pela noite dentro no Clube Avenida, ia às compras a Paris ou a Salamanca, às boîtes do Parque Mayer, tomar café a Espinho de Alfa Romeu desportivo ou comprar sardinhas frescas para o almoço à Figueira da Foz, de avioneta. 

Em 1940, a Covilhã possuía 60 por cento de toda a produção de lanifícios do país. Em 1949, exportava 6 mil toneladas de têxteis, grande parte para Angola. Em 1968 exportava três vezes mais — 15 mil toneladas só para Angola. A decadência começou nessa altura; o 25 de Abril de 1974 deu o golpe fatal nesse mundo de exploração e privilégio, e os anos 80 viram fechar, uma a uma, todas as grandes fábricas. Alguns dos edifícios foram convertidos em armazéns ou noutras indústrias (principalmente de confecções, que depois também foram abrindo falência). Mas a maior parte mantém-se no lugar, como que à espera que os operários voltem, que os teares se liguem de novo e a lã encha outra vez os armazéns. São edifícios degradados, quase sempre em ruínas, mas com estranhos sinais de vida emanando do interior. No meio da destruição, há máquinas, tecidos, botões, instrumentos espalhados pelo chão, como se o abandono não tivesse sido lento e duradouro, mas repentino e provisório. A Sociedade de Lanifícios, a Sociedade de Fabricantes, a João Pontífice, a Cláudio de Sousa Rebordão, a José Laço Pinto Júnior, e tantas outras fábricas que ainda enobrecem a Avenida Viriato, a principal artéria do Tortosendo, pararam no tempo, cristalizando o momento em que a actividade se deteve, em que alguém fugiu, ou se escondeu, para não enfrentar o devir histórico que os sepultaria a todos. Nas ruas do Tortosendo, a vida continua. As pessoas passam pelas carcaças das fábricas como que fingindo não as ver. Talvez não as vejam já. A inutilidade manifesta e monumental dos monstros de pedra transformou os em acidentes naturais, como se fossem colinas ou árvores centenárias. Ou templos primitivos, habitados ainda pelos deuses do ressentimento. Manuel Batista, 58 anos, vive no palacete da família. Hoje tem um negócio de importação de acessórios para as fábricas de confecção, com pouco que ver com as indústrias fundadas pelo avô, Francisco Pontífice Batista. 

Chegou a trabalhar nas fábricas geridas pelo pai, Gabriel, e os tios, mas afastou-se quando elas entraram em decadência. Depois, todo o império económico dos Batista se afundou. Francisco foi pobre. Emigrou para o Brasil e trouxe de lá algum dinheiro, que investiu na indústria têxtil. Diz-se que usava calções rotos, quando chegou, antes de enriquecer. “O meu avô era um homem de poucas palavras, recto e justo”, recorda Manuel. “Trouxe algum dinheiro do Brasil e investiu numa fábrica. Nunca pediu um empréstimo. Construiu as fábricas e depois deu sociedade a outros.” Francisco tinha quintas, várias fábricas, casas e propriedades. Diz-se que ajudava os pobres, que iam à quinta pedir comida. Ofereceu o terreno para a construção do seminário do Tortosendo, mandou construir um bairro inteiro, para os seus operários. Chamou-se Bairro dos Pinhos Mansos, mas era mais conhecido (e ainda é) como Bairro dos Batistas. Ficava ao lado das fábricas e incluía um parque para as crianças brincarem. Hoje chama-se Bairro José Carlos Ary dos Santos. Mas foi Francisco quem fundou o Clube Avenida. Comprou a casa e convidou os amigos para sócios. Carlos Barata, 72 anos, habitante do Bairro dos Batistas, lembra-se do clube. Havia lá grandes festas, carros de luxo estacionados à porta. Mas nunca entrou. Ia ao outro, o Clube Unidos, onde se dançava ao som de uma banda chamada “O Jazz”. Mas nunca ao Avenida. Não era sócio nem o deixavam ser. “Era só para os ricos. Nós não podíamos entrar.” Carlos e a mulher, Maria do Céu Gabriela Silveiro, de 70 anos, vivem no Bairro dos Batistas há 50 anos. Trabalharam na fábrica de Francisco, ele desde os 10 anos, ela desde os 11. Ganhavam muito pouco, mas pelo menos naquela altura havia trabalho, dizem agora a Manuel, o neto de Francisco. “Foi pena a indústria ter acabado, ó sr. Manuel”, diz Maria do Céu. E Carlos: “A vida dantes era mais alegre do que é agora.” Manuel começou a trabalhar cedo, na empresa do pai e dos tios, embora sem ganhar nada. Um dos tios chegou a pagar-lhe um salário, quando ele tinha 18 anos, mas o pai veio a seguir e tirou-lhe o dinheiro. “Deves trabalhar para aprender, não para ganhar dinheiro”, dizia-lhe. 

Manuel andou a carregar tecidos, a distribuir calças com uma carrinha. Isso já na fase em que as empresas se dedicavam à confecção. Nos tempos gloriosos dos lanifícios, era ainda criança e o que recorda é uma época de abundância e redenção. Brincava com os primos, nas várias casas e quintas da família. Tinha brinquedos caros, exclusivos. Como por exemplo um automóvel telecomandado, que ainda hoje guarda num armário, ao lado das colecções de carrinhos Matchbox. Manuel lembra-se do primo Tó Rui e das brincadeiras com carrinhos. Era esse o tema que dominava toda a sua infância e adolescência, bem como as dos primos e amigos. No caso do Tó Rui, o hobby prolongou-se pela juventude, e depois dela. Substituiu as miniaturas por carros de verdade, tornou-se corredor de rallies. Foi viver para Londres, dedicou-se às corridas de Fórmula 3 e Fórmula Ford. Chegou a ser campeão, com o nome de António Rui Bacelar de Moura. Conduziu um Fiat 600, um Abarth 1000, um Austin Cooper, um Alfa Romeu GTA e um Opel Commodore. Além de piloto, Tó Rui era músico numa banda de rock and roll que interpretava canções dos Beatles, Rolling Stones e Bob Dylan. “O Tó Rui era um verdadeiro playboy”, diz Manuel Batista. “Casou muito tarde e fazia uma vida… como disse um amigo dele, fazia suspirar as meninas da época e as suas mães.” Tó Rui morreu há dois anos, mas a paixão dos carros desportivos sobreviveu no Tortosendo. Manuel tem a parede do escritório forrada de fotografias de modelos dos anos 1960 e 70. E na garagem de uma das casas da família, na Avenida Viriato, junto à sede do Clube dos Ricos, hoje fechado, tem vários exemplares, perfeitamente tratados e conservados. Um Citroën Palas, um Taunus, um BMW 1600, um Renault 12, um Cortina GT e um Fiat 125 Special azul, o seu preferido.